O lixo como oportunidade de sucesso
Empreendedores encontram no lixo chance de negócio que não viam em matéria prima virgem. A partir de ideias inovadoras e simples, eles mudam suas vidas apostando na transformação de resíduos em lucro certo
A cada ano, cerca de 60 milhões de toneladas de lixo são produzidas em solo brasileiro. Parte desses resíduos é coletada e reaproveitada por cooperativas e grandes companhias de reciclagem e infraestrutura. Outra parte, jogada no meio ambiente, transforma-se em suplício para comunidades carentes que vivem próximas de lixões e aterros. Mas há ainda uma terceira parte que se transforma em oportunidade para pequenos e médios empresários que enxergam no lixo o início de um grande negócio. O site de VEJA conversou com empreendedores que, a partir de ideias inovadoras e simples, mudaram suas vidas apostando na transformação de resíduos em lucro certo e sustentável.
Não se trata apenas de benevolência ou vontade de salvar o planeta. O que os empreendedores brasileiros começam a enxergar é que a possibilidade de se iniciar um negócio a partir de resíduos é, em muitos casos, mais lucrativa do que utilizar matéria prima virgem. Eles também preveem que o lixo se tornará um ativo cada vez mais valioso. De acordo com um estudo do Sebrae, 46% dos pequenos empresários pesquisados identificam oportunidades de ganhos com resíduos – e 48,3% utilizam materiais reciclados em seu processo produtivo. “É muito mais comum eles entrarem em negócios com resíduos por razões econômicas do que pelo puro ato da sustentabilidade. O objetivo é o lucro”, diz Carlos Silva Filho, presidente da Associação Brasileira das Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais (Abrelpe).
A prosperidade que vem do lixo
Empresários lucram com soluções criativas para reaproveitar materiais que seriam descartados
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A caixinha que vira telha
João Trench Agnelli: suas telhas retiram milhares de embalagens longa vida do meio ambiente Em meados de 2007, os amigos Arthur Goldemberg e João Trench Agnelli decidiram investir em um negócio próprio que fosse ligado à reciclagem. Depois de muito pesquisar, ficaram fascinados pelo processo de fabricação de telhas a partir de embalagens longa vida – mais conhecidas como Tetra Pak, o nome de sua principal fabricante no país. Para colocar a operação de pé, avaliaram o mercado e perceberam que só teriam chances de montar uma empresa sólida se tivessem um parceiro de peso que pudesse fornecer caixinhas usadas. Passaram dois anos tentando emplacar um projeto com a Suzano Papel e Celulose para que ela fornecesse a matéria prima – e conseguiram. Fecharam um contrato de exclusividade com a companhia, que prevê a utilização de sua rede de coleta de papel para receber também as embalagens descartadas no lixo. “Com isso, conseguimos estruturar nosso negócio de forma mais equilibrada, já que o principal gargalo desse tipo de empreitada é a falta de caixinhas”, diz Agnelli (que é filho do ex-presidente da Vale, Roger Agnelli). Segundo ele, são necessárias 1.500 unidades de Tetra Pak para se produzir apenas uma telha.
Após três anos de planejamento, conversas e tentativas, a Ciclo Indústria e Comércio produziu sua primeira telha em junho de 2011. Um ano depois, a produção alcança o patamar de 30 mil telhas por mês e a previsão dos sócios é que chegue a 60 mil no início de 2013. “Nem imaginávamos que fôssemos algum dia ultrapassar as 30 mil telhas. Não esperávamos esse crescimento. Isso mostra que há muita demanda”, afirma Goldemberg. Na opinião do empresário, o principal desafio é vencer o preconceito do consumidor. “Muitos acham que, porque é feito de resíduo, não é bom. Mas é justamente o contrário. São telhas mais resistentes e fazem parte de um ciclo sustentável. Cuidamos para que não haja nenhum resíduo em todo o processo de fabricação”, diz Goldemberg. Preconceitos à parte, as barreiras parecem estar sendo vencidas. Em apenas um ano de operação, a Ciclo, segundo os sócios, já se paga – e dá lucro. (Eles, no entanto, não quiseram informar o valor dos ganhos.)
Lixo milionário
Renato Schneider: Ecobrain capacita cooperativas a produzirem reciclados para empresas Renato Schneider começou a utilizar resíduos como matéria prima e fonte de renda ainda quando cursava Desenho Industrial na Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP), nos anos 1990. "Estava sem dinheiro algum e comecei a pegar o que era descartado por vizinhos e pelos meus pais e revender para cooperativas", conta. O que era apenas uma solução momentânea se tornou projeto de vida. O designer mudou-se para os Estados Unidos e conheceu maneiras inovadoras de transformar lixo em objetos de design. De volta ao Brasil, no início dos anos 2000, fundou o embrião da Ecobrain, que é hoje uma das principais consultorias em reaproveitamento de resíduos do país. O trabalho de Schneider é criar soluções para que as empresas consigam transformar seus próprios resíduos em novos produtos. Para isso, ele tem uma rede de cooperativas com as quais trabalha e que fazem todo o processo de reaproveitamento. "Muitas vezes, as empresas compram o maquinário e treinam a própria cooperativa para produzir o novo bem, já reciclado", explica o empresário, que tem clientes do porte da Coca-Cola e Tetra Pak.
Além de prestar consultoria para empresas e gerenciar o processo produtivo das cooperativas para os clientes, a empresa também desenha produtos feitos de matéria reciclada para a venda no varejo. Segundo Schneider, a Ecobrain em breve terá um site de e-commerce. O desempenho da empresa chamou a atenção de investidores e, em 2008, um fundo americano de
venture capital adquiriu 10% do capital da consultoria. (Schneider preferiu não informar o valor da aquisição). Mas, tendo em vista o crescimento da companhia nos últimos anos, supõe-se que tenha sido um bom negócio. De um faturamento de 500 mil reais em 2007, a empresa alcançou 5 milhões de reais em 2011.
Guinada familiar
Eduardo Pirani: após repaginada no negócio do pai, sua empresa tem mais de 800 clientes O empresário paulista Eduardo de Rizo Pirani, 40 anos, trabalha com sustentabilidade desde os 13 anos, quando o tema ainda possuía pouquíssimos adeptos no país. Ele começou sua carreira na empresa do pai, a Pirani Tambores, fundada em 1983. Ao observar o negócio, que consistia na limpeza de latões de combustíveis que eram depois revendidos à Chevron, percebeu que os tambores continham muita sujeita, como a torta de filtração (máquina usada na metalurgia). “Fiquei imaginando que aquele material todo, que era descartado, poderia ser reutilizado para outros fins”, explicou. Foi assim que o executivo começou a pesquisar técnicas para reciclar o material “extra”. A ideia funcionou e Pirani conseguiu produzir matéria-prima para fabricação de aço. Em 1986, o executivo abandonou os latões, mudou o foco para resíduos siderúrgicos, principalmente pós metálicos, e fundou a Renova Beneficiamento. Sua primeira cliente foi a própria petrolífera.
A gama de produtos vendidos não parou de crescer e hoje o grupo possui dois outros braços: a Renova Reciclagem e a Renova Tratamento. Os clientes já passam de 800, entre montadoras como Fiat, Ford e Scania, e metalúrgicas de todos os tipos. A aventura do empresário ao transformar o negócio de seu pai em reciclagem mostrou-se real e lucrativa. Com faturamento de sete dígitos – Pirani não informa o valor preciso – e mais de 80 funcionários, o grupo recebe mais de 100 mil toneladas de resíduos por mês e conta com cinco unidades. “Este ano queremos crescer o mesmo do que o ano passado, cerca de 20%, graças à nossa nova unidade de produção de energia para indústria cimenteira".
O sucateiro eletrônico
Paulino Andrade: criou um sistema de coleta e venda de lixo eletrônico que triplicou sua renda mensal Quando trabalhava como supervisor de logística em uma multinacional sediada em São Paulo, Paulino Andrade observava, intrigado, as dificuldades que as empresas tinham para se livrar de seus resíduos – não só os industriais, mas de qualquer tipo, inclusive material de escritório, que deixasse de ser útil. A dor de cabeça para as pessoas comuns era ainda maior. Em 2009, abandonou o papel de observador e resolveu agir. Montou um site na internet, o Cidadão ECO, que permitia que qualquer pessoa da Grande São Paulo se cadastrasse para ter computadores, telefones, impressoras e outros artigos eletrônicos quebrados ou obsoletos retirados por ele, gratuitamente, em sua própria casa. O “lixo eletrônico” era transportado e vendido por Andrade a empresas especializadas em reciclagem de metais e plástico. O que era apenas uma atividade paralela rapidamente transformou sua rotina. O empreendedor, hoje 37 anos, abandonou o emprego, alugou um galpão para separar as peças e o negócio cresceu. As 30 toneladas de lixo eletrônico que coletava semanalmente passaram a ser diárias. “Hoje, a maior parte dos clientes é composta por pequenas e médias empresas que não sabem como dar fim aos produtos que não usam mais”, conta.
Entre os “lixos” que já chegaram à empresa de Andrade estão smartphones, inclusive iPhones, e TVs de LED. Ele garante que vai tudo para a reciclagem. “Para revender produtos assim, precisaria me certificar de que estão funcionando bem e não tenho tempo de fazer esse tipo de teste”, explica. O produto mais valioso para as recicladoras são os microprocessadores de computadores. “As empresas reutilizam o alumínio, o níquel e outros metais ferrosos e não ferrosos. Cerca de 95% de tudo o que coleto volta para a cadeia produtiva em forma de matéria-prima”, explica. Com a empreitada, Andrade viu sua renda mensal triplicar, chegando a 30 mil reais por mês.
Sono sustentável
Virgínia e Eduardo: fibra de coco, fio de garrafa PET e outros materiais sustentáveis vão para dentro do futon Quando, em 1986, a carioca Virgínia Rafael criou a Biofuton, começou a utilizar resíduos de indústria têxtil para preencher o interior dos futons que fabricava. Naquela época, a reciclagem estava longe de ser uma realidade econômica no Brasil. “Nem futons eram feitos naquela época porque até a colônia japonesa já havia se rendido aos colchões”, relembra a empresária, que defende a utilização desse tipo de produto como alternativa sustentável aos colchões feitos com espuma de borracha. “Trata-se de um passivo ambiental grande, pois o descarte é complicado e a reciclagem, pouco difundida”, afirma.
Ao passar dos anos, a empresária e seu marido (e sócio), Eduardo Cabral, encontraram novas matérias-primas para aumentar a produção. Fibra de coco, fio de poliéster feito com garrafas PET, látex biodegradável, tecido de algodão orgânico e qualquer alternativa que apareça e torne os produtos menos agressivos ao meio-ambiente. “Posso dizer que, hoje, 80% do material que uso é sustentável ou provém de resíduos. Há coisas, como o zíper, que ainda não consigo substituir”, conta. Um futon tamanho casal fabricado por Virgínia pode custar cerca de 1.800 reais – preço salgado se comparado a um colchão de espuma. “Essa questão do preço é muito relativa. Tem pessoas que compraram o produto em 1986 e continuam com ele até hoje. O objetivo é que ele não seja descartável e que dure a vida toda. E é por isso que também reformo os futons aqui”, conta. O lucro com a fabricação de futons, almofadas e tapetes garantiu o sustento da família nos últimos vinte anos, mas Virgínia faz um alerta: “As empresas têm de ter consciência de que possuem um papel social em toda essa cadeia. Lucro não é só dinheiro, e sim tudo aquilo de bom que você deixa para as pessoas”, diz.
Não à toa, companhias do porte do Bradesco e Itaú - que não pertencem ao setor de reciclagem - fazem leilões de seu lixo eletrônico para empresas que o reciclam. “Esse tipo de descarte que leva a um retorno passou a ser viabilizado em alguns nichos de negócio, mas não é sempre que isso ocorre em grandes empresas. Depende muito da demanda por aquele lixo e da viabilidade econômica que ele pode proporcionar”, afirma Silva Filho. Segundo dados da Abrelpe, a geração de resíduos aumentou 1,8% em 2011 – um porcentual que é superior à taxa de crescimento populacional do país, que ficou em 0,9%. Ou seja, brasileiros consomem mais, descartam mais e reciclam menos. Ainda de acordo com a associação, 6,4 milhões de toneladas de resíduos sólidos deixaram de ser coletadas no ano de 2011 e acabaram depoistadas no meio ambiente. Segundo um levantamento do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), o Brasil deixa de ganhar 8 bilhões de reais com reciclagem de resíduos a cada ano.
Logística reversa – Outro ponto oportuno para empresários que atuam nesse setor é a entrada em vigor da Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), que foi lançada pelo governo em 2011. Ela prevê que toda a sociedade (indústria, comércio, poder público e consumidores) será responsável pelos produtos que produz e consome e, por consequência, pelo destino que eles terão. Retirar, reutilizar ou neutralizar o impacto desse lixo no meio ambiente é chamado de logística reversa. Dentro desse plano, estabelece-se também o fim dos lixões a céu aberto.
Ainda que membros do próprio governo não acreditem que o PNRS será cumprido à risca, como ocorre com o próprio Ipea, que elaborou estudo crítico a esse respeito, a oportunidade está sendo criada. “Eu pretendo até mesmo iniciar um novo negócio de coleta, desta vez com pneus, porque haverá demanda”, aposta o empreendedor Paulino Andrade, que coleta gratuitamente o lixo eletrônico de empresas e pessoas físicas, por meio de um cadastro em um site na internet: o Cidadão Eco.
Carga tributária – Mesmo com a criação de soluções inteligentes e lucrativas para o lixo, que têm reflexo positivo no meio ambiente e na oferta de emprego, não há nenhum tipo de incentivo governamental específico para o setor. Nos últimos meses, preocupado em tirar o país da rota da crise financeira internacional, o Palácio do Planalto voltou-se, entre outros setores, para a construção civil. Desde março, pisos laminados, revestimentos e outros insumos contam com o benefício da redução do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI). Contudo, produtos semelhantes, mas originários do lixo, não têm o apoio do estado – e seus fabricantes prosperam unicamente por seus próprios esforços.
Em fevereiro, o senador Paulo Bauer (PSDB-SC) foi um dos autores da Proposta de Emenda à Constituição (PEC 1/2012), que prevê que produtos elaborados a partir de material reciclado sejam isentos de alguns impostos. O objetivo, segundo o senador, é motivar o empreendedorismo no setor, já que a sustentabilidade por si só ainda não é uma razão suficiente para dar velocidade à expansão de empresas desse nicho. Desde o início do ano, o projeto tramita na Comissão de Meio Ambiente, Defesa do Consumidor e Fiscalização e Controle (CMA) do Senado.
Fonte: VEJA (Com reportagem de Naiara Infante Bertão)